domingo, 27 de novembro de 2011

O Garoto da bicicleta - "Le Gamin au vélo" (2011) - Luc e Jean-Pierre Dardenne


(ATENÇÃO: este texto revela trechos do filme)


O garoto da bicicleta ("Le gamin au vélo") é a mais nova produção dos irmãos Dardenne, vencedora do Grande Prêmio Ex-aequo do Festival de Cannes de 2011 (confira aqui) e indicado a vários títulos.

Mantendo a tradição de sensibilidade e humanismo, os irmãos Dardenne nos brindam com esta película rápida e bem rodada...

A narrativa inicia-se numa cidade interiorana da Bélgica, e a câmera nos introduz a história a partir de um momento de impasse, que irá se repetir ao longo de toda a película, imprimindo desde já o seu ritmo e tensão:

Cyril (Thomas Doret), um jovem de 11 anos (beirando os 12), de olhar determinado e igualmente selvagem (revoltado, talvez?)... agarra-se tenazmente a um telefone... e discute com um rapaz (que tenta inutilmente demovê-lo da empreitada) afirmando que alguém irá atender o telefone... segundos depois, descobrimos que o garoto tenta, insistentemente, falar com o pai...

Aos poucos, nos damos conta: Cyril está num internato... e o rapaz é um educador... (que tenta fazê-lo compreender que aquele telefone - ao que tudo indica, da residência paterna - não funciona mais). O espectador, juntamente com Cyril, trilha, persegue, corre e descobre, pouco a pouco os desdobramentos de sua própria história.

Cyril revolta-se, debate-se, agride e foge por entre os braços dos educadores... em busca obstinada e desesperada para recuperar sua "bicicleta"...

Após algumas peripécias, Cyril chega ao prédio onde supostamente mora o pai... fala com o porteiro, insiste para ir ao apartamento... o porteiro esclarece que não mora mais ninguém no local... Cyril arma subterfúgios e meios de adentrar o prédio e acessar o tal apartamento. Decepção... Os educadores o localizam, ele resiste, morde, foge.

E se entocaia numa clínica... onde novamente resiste e agarra-se a uma mulher que lá estava... após negociações... o porteiro aceita abrir o apartamento para que Cyril veja e confirme que o pai não mora mais lá (?!)... assim, espectador e protagonista ficam ao alento...

Este é um pequeno extrato da dinâmica da película... dor, angústia, solidão, revolta, ódio, tudo se mescla num vai-e-vem ágil das câmeras... pouco é dito... os olhares transpassam, traduzem e deixam escoar os turbilhões que dominam o pequeno protagonista no desenrolar de suas descobertas (cá entre nós, muito bem e habilmente escolhido!).

O "acaso" (um gesto espontâneo e benevolente) faz com que a moça da clínica, Samantha (Cécile de France), traga a "bicicleta negra e cromada" aos braços de Cyril, que passará a ser o veículo (defendido com "unhas e dentes") que irá nos transportar  por essa jornada angustiada em busca do "pai".

A empreitada de Cyril em localizar seu pai, nos descortina pouco a pouco, a dura realidade que se desvela de forma quase elegante ao espectador e desesperadamente dolorosa e contida para o pequeno.

Quando a verdade subjacente vem à tona, não vem sem prejuízo: esta é dolorosa demais para o nosso pequeno Cyril... impossibilitado de contê-la sozinho, a raiva, o ódio, a revolta e a incompreensão, dominam o protagonista; que, entre a oscilação de perceber a verdade e a impossibilidade de aceitá-la, entrega-se a árdua hesitação entre a auto e a hetero-agressividade... conduzida pelos irmãos Dardenne com grande maestria*** (neste ponto sinto-me tentada a evocar alguns psicanalistas que lidaram com a tendência anti-social).

A escolha dos atores para os papéis foi crucial para a apreensão do efeito do ódio de Cyril e da impossibilidade de contê-lo... (ambos os atores/personagens/protagonistas apresentavam uma fragilidade, tanto física quanto emocional, subjacente). Samantha, a moça da clínica (a "cabeleireira da praça") tenta diversas vezes e inutilmente, conter (e proteger) o pequeno, mas indomável Cyril (de sua própria autodestrutividade)... que também tenta conter aquilo que não é passível de controle... a revolta e a dor da ausência quase inexplicável do pai... 

Paradoxalmente, Cyril, entrega-se a situações de grande submissão e vulnerabilidade... embora tenha demonstrado ao longo de todo o seu percurso, a possibilidade de se haver com as dificuldades, de se defender habilmente... expõe-se a condições de punibilidade. 

A solidão de Cyril, bem como as motivações de Samantha não são focadas ou esclarecidas, mas sutilmente transmitidas nas entrelinhas das conversas pontuais que emergem rapidamente entre um impasse e outro... rementendo-nos a um universo intimista e sutil... num tom quase onírico das frágeis e mutáveis relações humanas.

 

Excelente e belíssima película: ágil, delicada, sensível e complexa... a leitura superficial pode suscitar (como apreendi de alguns comentários no dia da projeção) sentimento de enfastio e rejeição ("muleke chato")... mas um olhar mais detido, revela a grande sensibilidade dos diretores (inclusive, para suscitar tal sentimento numa platéia emocionalmente "menos precavida")...

Diria que é visada obrigatória a qualquer um que tenha interesse nas nuances das relações humanas, principalmente naquelas atinentes à infância e suas vicissitudes.

***Quem sabe eu consiga retornar para tecer alguns comentários psis?!